Coluna: O Som da Coisa - por Herom Vargas
20/5/2009
A metáfora de Gil poeta
Uma das funções da arte é falar dela própria. Um filme quando trata do ato de filmar, um livro que discorre sobre a escrita ou uma peça teatral construída para demonstrar o que é o teatro são exemplos desse efeito, também chamado de metalinguagem. Pode parecer petulante, mas todo artista traz dentro de si alguma especulação sobre sua própria atividade.
No campo da música popular, um caso bastante inteligente e criativo está na canção Metáfora, de Gilberto Gil, gravada no disco Um Banda Um, de 1982. Nela, o autor tenta explicar ao ouvinte a dinâmica de trabalho do artista, usando o exemplo do poeta que maneja as palavras em seu ato de composição.
A música começa com um leve assobio em andamento lento. Numa delicada melodia, Gil indica na letra o mundo inusitado, incerto e paradoxal da arte a partir de uma situação aparentemente fútil ao citar uma “lata”: “Uma lata existe para conter algo / Mas quando o poeta diz: ‘lata’ / Pode estar querendo dizer o incontível”. Na segunda estrofe, surge um conceito também usual cujo sentido pode ser alterado pela mágica arte do poeta: “Uma meta existe para ser um alvo / Mas quando o poeta diz: ‘meta’ / Pode estar querendo dizer o inatingível”.
Gil constrói duas possibilidades nas quais a obviedade das coisas do mundo é invertida em nome da criação artística. Mas, não para por aí. Na sequência, de maneira ousada e sob um acompanhamento instrumental marcado, quase marcial, questiona quem se atreve a exigir alguma racionalidade do artista com relação à sua “lata” e responde a quem não percebe que “… ao poeta cabe fazer / Com que na lata venha a caber / O incabível”.
O poeta (na verdade, o próprio compositor) demonstra sua capacidade inventiva em dois momentos nítidos. Em primeiro lugar, em “tudonada” (escrito assim mesmo!), neologismo que comprime a oposição das palavras. Depois, na brincadeira com a palavra final, cujo sentido estrito é “não ter cabimento”, ou seja, não ter sentido ou não estar no lugar correto. Para o poeta da canção (como para todo artista criativo), qualquer coisa tem cabimento, qualquer coisa cabe em qualquer lugar, dependendo do seu objetivo de criação.
No último trecho, Gil decreta a impossibilidade de o interesse do poeta ser discutido, pois sua lata não é absoluta e sua meta pode estar dentro ou fora. Porém, ao mesmo tempo, insinua a possibilidade de entender o trabalho artístico quando aproxima duas palavras importantes – “meta” e “fora” – de forma lúdica: “Deixe a sua meta fora da disputa”.
Na linha final (antes de assobiar um pedaço da melodia da canção Penny Lane, dos Beatles), tudo se resolve nesse campo de indeterminações, pois, a rigor, o trabalho do poeta está simplesmente numa figura de linguagem tipicamente criativa que utiliza coisas para falar de outras coisas: a metáfora.
Herom Vargas, é doutor em Comunicação e Semiótica e professor nos cursos de comunicação da USCS e da Universidade Metodista de S. Paulo. Já tocou em vários bares da vida e, atualmente, pesquisa música popular. Fale com o Herom: redacao@entermagazine.com.br
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